segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Annie Ernaux, “Os Anos”

 

“Antigamente, quando desejava escrever, no seu quarto de estudante, esperava descobrir uma linguagem desconhecida que desvendaria coisas misteriosas, como se fosse uma visionária. Imaginava também o seu livro acabado, uma revelação, para os outros, do seu ser mais profundo, uma realização superior, uma espécie de glória - o que ela não teria dado em troca para se tornar “escritora”, da mesma maneira que, em criança, sonhava que adormecia e acordava transformada em Scarlett O’Hara. Mais tarde, à frente de turmas desumanas de quarenta alunos, atrás de um carro de supermercado, ou sentada em bancos de jardim com um carrinho de bebé ao lado, esses sonhos desapareceram. Não havia nenhum mundo inefável a surgir, como por magia, de palavras inspiradas, e ela nunca escreveria a não ser a partir da sua língua, a de todos, o único instrumento com o qual podia contar para agir sobre aquilo que lhe causava revolta. Portanto, o livro a fazer era um instrumento de luta. Nunca abandonou esta ambição, mas agora, acima de tudo, gostaria de captar a luz que inunda rostos doravante invisíveis, toalhas de mesa cheias de comida desaparecida, essa luz que já lá estava, dentro das narrativas dos domingos de infância, e nunca mais deixou de descer sobre as coisas no momento em que são vividas- uma luz de outrora.”

Annie Ernaux, “Os Anos”, Livros do Brasil.

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