segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Os 50 anos de Assírio & Alvim

 

No dia 12 de Novembro de 2022, a editora Assírio & Alvim completou cinquenta anos. E isso levou-me a percorrer memórias e a perceber o quanto ela foi importante na minha descoberta de autores, de livros, de pintores.

Há uns anos descia a Rua Miguel Bombarda, a conhecida rua das galerias no Porto, na expectativa de encontrar livros novos na livraria Assírio & Alvim. O ritual era quase sempre o mesmo, já conhecia de cor aquele espaço. Percorria as estantes, dedilhava nomes, memorizava títulos, trazia os marcadores que estavam pousados nas prateleiras, e buscava A Phala. Esta era uma publicação mensal e gratuita da editora e, para mim, a melhor que alguma editora já realizou. Ao mesmo tempo, esperava religiosamente pela feira dos livros manuseados para trazer um ou outro livro. Foi assim que trouxe o «meu» António Franco Alexandre, com a marca de uma etiqueta velha que foi retirada.

A livraria não era só um espaço onde o lume era o catálogo extraordinário da Assírio, também era a luz de um espaço de encontros e de exposições. (E não bastava um cesto cheio de figos, ainda tínhamos esse melaço todo.) Infelizmente, nunca tive a sorte de me cruzar com Mário Cesariny, nem de ver o fumo do cigarro de Vila-Matas.

O coração da editora Assírio & Avim era o editor e poeta Manuel Hermínio Monteiro, verdadeiramente apaixonado pelo que fazia. Segundo o poeta Manuel António Pina, «os catálogos da Assírio são de alguma forma, um seu bilhete de identidade. Como aquela personagem de Borges que, desenhando ao longo de toda a vida um mapa, e enchendo minuciosamente o papel de rios, cidades, montanhas, impérios, descobre na confusão de manchas, traços, volumes, a imagem do seu próprio rosto, também os livros que o Hermínio editou ao longo da vida desenham (vêmo-lo agora nitidamente) o perfil do seu rosto intelectual e afectivo.»

Manuel Hermínio Monteiro escreveu várias introduções editoriais, notas, comentários na publicação A Phala. No número 4 de Janeiro/Fevereiro de 1987, falava da castração do rio Tâmega, do ambiente (um tema sempre actual): «Agora, nas vésperas do séc XXI, no Ano Internacional do Ambiente e ano comemorativo do centenário do nascimento do Amadeo, uma barragem já construída, pretende transformar esta força anímica e “o vale sagrado de Tâmega” num imenso lençol de águas paradas e chocas. Desaparecerão para sempre os centenários arvoredos, os rochedos, as ínsulas. Os moinhos e as poldras ficarão submersos. A um rio vivo, buliçoso e viril sucederá um lago imóvel de águas lamacentas e silenciosas, semicerrando os olhos dos arcos da ponte de S. Gonçalo, como se a letra M da palavra aMarante fosse substituída por um espesso traço horizontal, tornando-o ilegível.»

Voltando ao meio-século, são muitos os títulos, muitos os livros que demonstram como esta editora abriga o melhor da cultura portuguesa.

Para vocês, quais são os livros marcantes da Assírio & Alvim?

Nuccio Ordine, A Utilidade do Inútil

 

“Flaubert, no seu Dicionário das Ideias Feitas, define a poesia como “completamente inútil”, porque “passou de moda”, e o poeta como “sinónimo de pateta” e de “sonhador”. Parece que  não serviu para nada o sublime verso  final de um poema lírico de Hölderlin em que recorda o papel fundador do poeta: “Mas o poeta funda o que resta”.

Nuccio Ordine, A Utilidade do Inútil, Faktoria de Livros.

Caminhar

 

Caminhar, pensar, pensar, caminhar, com que ritmo, com que cadência? Vou para o trabalho a pé e volto dele a pé, e nesse caminho a paisagem que me adentra é o pensamento que flui. Thoreau escrevia “Parece que, no momento em que as minhas pernas começam a mover-se, os meus pensamentos começam a fluir.”

É sabido que o caminhar anda de mãos dadas com a literatura, como fonte de inspiração, como forma de se elaborar uma história. É só estender o mapa literário e encontramos Virginia Woolf com a sua Mrs Dalloway em Londres, ou melhor, a Clarissa a caminhar pela Bond Street para comprar flores; mergulhamos em Ulisses, de James Joyce, na caminhada do alter-ego Stephen Dedalus, que percorre muitas ruas da capital irlandesa para se encontrar com Leopold Bloom; viajamos a pé com Sebald pelos “Anéis de Saturno”; caminhamos no gelo com Werzog, que atravessou a pé a Alemanha e entrou na França, chegando ao seu destino: o hospital onde se encontrava a sua amiga Lotte Eisner.

Ainda antes da literatura, há a filosofia. Na Grécia Antiga, houve a escola peripatética em que os discípulos de Aristóteles caminhavam enquanto liam e davam preleções. Uns anos depois, os filósofos Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger tomavam o caminhar como importante.

Voltando à literatura, há os poetas. “My streets are my Ideas of Imagination”, William Blake no seu poema épico Jerusalém. Para Baudelaire, ao caminhar nas suas ruas, Paris tornou-se num livro para ler, como flâneur, um sujeito que caminhava pelas ruas de Paris, de maneira contemplativa. Em “Caminhada”, Henry David Thoreau conta-nos que “quando um certo viajante pediu à criada de Wordsworth que o levasse até ao escritório do seu amo, ela retrucou: “a biblioteca é aqui, mas o escritório é ao ar livre”. E, como para Thoreau, o caminhar estava interligado com a natureza.

O poeta Wallace Stevens caminhava para o trabalho todas as manhãs e voltava para a casa a escrever poemas na sua cabeça. E foi assim que surgiu o seu famoso poema “Thirteen ways of looking at a blackbird”.

Nos romances, na filosofia, na poesia, no cinema, o andar é um acto de pensamento. Andar é ganhar espaço, o espaço que comunga com o interior. A forma como caminhamos, o ritmo que tomamos também é o espelho desse interior. Caminhar, vaguear, errar.

Terminando esta caminhada (que foi um pequeno passo), trago para esta linha Robert Walser, que morre na neve aquando de um dos seus passeios habituais perto da clínica para doentes mentais onde estava hospitalizado. Walser gostava muito de caminhar e percorreu muitas distâncias a pé. Em “Caminhadas com Robert Walser”, Carl Serlig acompanhou o escritor suiço em alguns dos seus passeios diários. Estes diários são exemplo do “olhar caminhante” e o mistério que habitava em Walser, e que segundo Vila-Matas foi o pioneiro na arte de desaparecer.

Quais são os vossos personagens “caminhantes”, “errantes”, “deambulantes” preferidos?

Cormac McCarthy, "A Estrada"

 

"De manhã ele reavivou a fogueira e comeram e contemplaram a beira-mar. A aparência fria e chuvosa daquela costa não diferia muito das paisagens costeiras do mundo setentrional. Nenhuma gaivota, nenhuma ave marinha Artefactos carbonizados e absurdos dispersos ao longo da orla marítima ou a rolar nas ondas. Apanharam madeira trazida pelo mar e amontoaram-na e cobriram-na com o oleado e depois começaram a caminhar pela praia fora. Somos vagabundos das praias, disse ele. E o que é isso? São pessoas que andam pela praia, à procura de coisas de valor que o mar possa ter trazido. Que géneros de coisas? Todas as coisas possíveis e imaginárias . Tudo o que nos possa ser útil. Achas que vamos encontrar alguma coisa? Não sei. Vamos dar uma olhadela . Dar uma olhadela, disse o rapaz."

Cormac McCarthy, "A Estrada", Relógio d' Água

"Persephone Books”

 

A segunda livraria que trago aqui é “Persephone Books”. Não me recordo muito bem de como cheguei até ao bairro Bloomsbury, em Londres, onde viveu Virginia Woolf e o seus amigos intelectuais, e maravilhei-me com “Persephone Books”. Pensava eu que só existiriam livrarias destas em pixel inventado por algum algoritmo no Instagram, ou em padrão repetido várias vezes num papel de embrulho de uma papelaria muito chique. Contudo, ela existe mesmo e eu fiquei encantada.

Além de livraria, “Persephone Books” também é uma editora que publica obras de ficção e não ficção, escritas principalmente por mulheres entre a primeira e a segunda Grande Guerra Mundial e que a escritora e editora Nicola Beauman voltou a editar para que elas não fossem esquecidas, desconhecidas e esgotadas.

A editora tem um cuidado muito particular com a edição, ou seja, cada livro tem a particularidade de ter na sua folha de guarda um tecido com um padrão diferente. A sua capa é cinzenta, porque, para Nicola Beauman, os leitores não se vão interessar pelo aspecto, mas sim pelo conteúdo.

Também há uma atenção especial na forma com os livros se encontram expostos na livraria. Estão organizados de forma horizontal e à frente de cada “legado” há um marcador a assinalar o nome da autora ou de autor.

No dia em que visitei a livraria, a proprietária Nicola Beauman, com a sua chávena de chá entre mãos, era entrevistada para um jornal norte-americano. Soube depois, num site, o que ela diria nessa manhã outonal.

Flores, cestos com mantas, quadros, janelas banham todo este quadro em que gostaria de permanecer. Um quadro vivo. “Persephone Books” existe mesmo.

TELÉSTIC0, "Rimbaud"

 Viajou de forma exaustiva por 3 continentes antes de morreR

Cresceu separadamente do seu paI

enfant terrible é o que todos sugereM

há quem diga também que hoje seria um poeta num rock cluB

em város filmes a sua vida foi retratadA

a literatura, a música,a arte, influencioU

o mais subversivo dos poetas, RimbauD

Damon Galgut, "A Promessa"

"Há um momento do dia que tenta reservar para si mesma, mais concretamente as primeiras duas horas depois do turno. Seja de manhã ou de noite, o ritual é o mesmo. Enche a banheira e acende uma vela no rebordo. Depois despe o uniforme hospitalar, peça a peça, sempre com cuidado para seguir a ordem certa, porque, se houver um engano na sequência, vai ter de se vestir outra vez e recomeçar do princípio. Estendida dentro de água morna, enquanto a luz na casa de banho vai mudando, ela consegue muitas vezes esquecer-se de si mesma por uns minutos. Ou então tornar-se tão completamente ela mesma que tudo o resto fica em suspenso, incluindo o dia comprido e difícil que deixou para trás. Mas esta noite ela está inquieta, algo não bate certo no coração das coisas."

Damon Galgut, "A Promessa", Relógio d' Água. 

“A Trilogia de Copenhaga”, de Tove Ditlevsen

 

O que nos leva a escolher um livro?

Quando chegou à livraria “A Trilogia de Copenhaga”, de Tove Ditlevsen, chamou-me logo a atenção a capa, aquele rosto, aquele olhar.

Pergunto-me: Quem é Tove Ditlevsen? A “orelha” do livro diz-me que “é uma das vozes mais originais e importantes da literatura dinamarquesa.” Fico mais curiosa.

Pergunto-me depois: Que livro é este? Petisco todos os trechos que preenchem toda a outra “orelha” e contracapa. A publicação “Time” fala em “complexidades da feminilidade”; “ The New York Times” diz que isto “deve ser uma obra-prima”; “The Guardian” apresenta-nos a trilogia como uma “pequena parte do extraordinário legado” da escritora. Fico mais curiosa.

Na contracapa, sou informada de que a trilogia é “a resposta de Copenhaga aos romances napolitanos de Elena Ferrante” e que Tove é vista como uma “precursora de escritores confessionais como Karl Ove Knausgard, Annie Ernaux, Rachel Cusk e Deborah Levy.”

Pergunto-me por fim: Que livro é mesmo este?

Começo a ler o primeiro parágrafo: “De manhã, havia esperança. Pousava como um reflexo fugidio no cabelo preto e lustroso da minha mãe, no qual nunca me atrevia a mexer. Pousava também na minha língua, juntamente com o açúcar e as papas de aveia mornas que eu mastigava, com vagar, enquanto observava as mãos esguias e entrelaçadas da minha mãe, (…).”

Já estou dentro do livro.

E vocês, o que vos leva a escolher um livro?

Roberto Bolano, "Os Detectives Selvagens"

 

"Durante um tempo, a Crítica acompanha a Obra, depois a Critica desvanece-se e são os Leitores quem a acompanha. A viagem pode ser longa ou curta. Depois os Leitores morrem um por um e a Obra continua só, ainda que outra Crítica e outros Leitores pouco a pouco vão acompanhando o seu percurso. Depois a Crítica morre outra vez e os Leitores morrem outra vez e sobre este rasto de ossos a Obra segue a sua viagem para a solidão. Aproximar-se dela, navegar no seu rasto é sinal inequívoco de morte certa, mas outra Crítica e outros Leitores se aproximam dela, incansáveis e implacáveis, e o tempo e a velocidade devoram-nos. Por fim, a Obra viaja irremediavelmente sozinha na Imensidão. E um dia a Obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirá o Sol e a Terra, o Sistema Solar e a Galáxia e a mais secreta memória dos homens."

Roberto Bolano, "Os Detectives Selvagens"

"A Religião do Livros", Carlos Maria Bobone

 

Sempre me interessaram livros sobre livros. Por isso, quando chegou à livraria “A religião dos livros” de Carlos Maria Bobone, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos para a fabulosa colecção “Retratos”, comprei-o no próprio dia.

O fabuloso mundo das livrarias; os livros dos livreiros; as palavras dos livros; livros usados e livros raros; leilões e leiloeiros; de onde vêm os livros; livrarias independentes; aldeia global trouxe as aldeias de verdade; os clientes; a doença dos livros; há esperança para as livrarias? — estes são os capítulos, os motes para conhecermos várias histórias.

Destaco esta história: num só dia, na rua do Alecrim, a Livraria Campos Trindade pôs à disposição dos clientes mais de três mil livros da biblioteca de Miguel Esteves Cardoso…

No contexto do grave problema da habitação que vivemos, o autor conta-nos também sobre as pessoas que têm de se mudar para casas mais pequenas e que, por isso, deixam as suas bibliotecas pelo caminho. Mortes, mudanças de país, dificuldades económicas, desemprego levam igualmente a que as pessoas deixem os livros para trás. Como se negoceia quando há também um lado emocional? “É a biografia literária de homens e mulheres apaixonados pelos livros que se está a comprar.”

Quando se fala sobre livrarias independentes, há uma frase que sublinho várias vezes: “A livraria é importante para que o leitor encontre aquilo que não sabe que existe.” Como isto é importante nos dias de hoje em que podemos procurar facilmente quase tudo na Internet.

Curzio Malaparte, "Kaputt"

 

"Eu possuía ainda um pouco de pão e queijo no saco de viagem; comecei a comer, percorrendo a passadas largas o compartimento. Tirara as botas e caminhava de pés descalços pelo chão de terra batida, percorrido por colunas de grandes formigas negras. Sentia as formigas subirem-me pelos pés, insinuarem-se entre os dedos, explorarem-me os tornozelos. Estava morto de fadiga e nem sequer conseguia mastigar, de tal modo sentia os maxilares renitentes e os dentes doridos pela fadiga. Deixei-me cair, finalmente, sobre a cama e fechei os olhos, mas não consegui adormecer. De tempos a tempos, um tiro de espingarda, próximo ou longínquo, rompia o silêncio da noite. Eram tiros disparados por guerrilheiros, escondidos nos campos de trigo e nas florestas de girassóis que cobrem toda a imensa planície ucraniana quer do lado de Kiev, quer do de Odessa. Depois, à medida que a noite se tornava mais densa, o fedor da carcaça do cavalo fundia-se com o perfume da erva e dos girassóis. Não podia dormir. Estava estendido no meu leito de olhos fechados, mas não conseguia adormecer, de tal modo estava morto de fadiga."

Curzio Malaparte, "Kaputt", cavalo de ferro.

Annie Ernaux, Prémio Nobel 2022

 

“Todas as imagens irão desaparecer”, começa assim Annie Ernaux no seu livro “Os Anos”. E a partir daí desliza uma cascata de imagens, num registo fragmentário, por meio da relação entre fotografias, canções, filmes, objectos, eventos.

“(…) ela só olhará para si própria para aí reencontrar o mundo, a memória e o imaginário das ideias, das crenças e da sensibilidade, as transformações das pessoas e do que ela viu e conheceu (…).”

O mundo é posto em palavras, e a memória é construída.

“Tudo se apagará num segundo. O dicionário acumulado desde o berço até ao leito da morte irá desaparecer. Depois, o silêncio e nenhuma palavra para o dizer. Da boca aberta nada sairá. Nem eu nem mim. A língua continuará a pôr o mundo em palavras. Nas conversas à volta de uma mesa em dia de festa seremos apenas um nome, cada vez mais sem rosto, até desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante.”

Annie Ernaux é tida com uma das responsáveis por uma vertente de autoficção. A escritora recusa este termo.

Em Portugal, além do livro “Os Anos”, temos a edição recente de “O Acontecimento“ (ainda não li, mas tenho muita curiosidade em lê-lo. É sobre um tema actual, o aborto.), “Uma paixão Simples”, sobre o desejo e que foi adaptado ao cinema, e por fim “Um lugar ao Sol” e “Uma mulher”, compilados no mesmo volume.

Para quem gosta de ler em inglês, apesar da autora ser francesa, aconselho vivamente as fabulosas edições de Fitzcarraldo (que tem 8 títulos da Annie Ernaux no seu catálogo e dois que serão publicados no próximo ano, como o seu último romance “Le jeune homme”).

Fico muito contente por ver a escritora Annie Ernaux a ser laureada pelo prémio Nobel, porque a sua voz será mais ouvida.

Annie Ernaux, “Os Anos”

 

“Antigamente, quando desejava escrever, no seu quarto de estudante, esperava descobrir uma linguagem desconhecida que desvendaria coisas misteriosas, como se fosse uma visionária. Imaginava também o seu livro acabado, uma revelação, para os outros, do seu ser mais profundo, uma realização superior, uma espécie de glória - o que ela não teria dado em troca para se tornar “escritora”, da mesma maneira que, em criança, sonhava que adormecia e acordava transformada em Scarlett O’Hara. Mais tarde, à frente de turmas desumanas de quarenta alunos, atrás de um carro de supermercado, ou sentada em bancos de jardim com um carrinho de bebé ao lado, esses sonhos desapareceram. Não havia nenhum mundo inefável a surgir, como por magia, de palavras inspiradas, e ela nunca escreveria a não ser a partir da sua língua, a de todos, o único instrumento com o qual podia contar para agir sobre aquilo que lhe causava revolta. Portanto, o livro a fazer era um instrumento de luta. Nunca abandonou esta ambição, mas agora, acima de tudo, gostaria de captar a luz que inunda rostos doravante invisíveis, toalhas de mesa cheias de comida desaparecida, essa luz que já lá estava, dentro das narrativas dos domingos de infância, e nunca mais deixou de descer sobre as coisas no momento em que são vividas- uma luz de outrora.”

Annie Ernaux, “Os Anos”, Livros do Brasil.

Salman Rushdie, “Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites”

“O medo era um homem a fugir da sua sombra. Era uma mulher de auscultadores, e o único som que ouvia era o do seu terror. O medo era o solipsista, narcisista, cego a tudo menos a si próprio. O medo era mais forte do que a ética, mais forte do que a razão, mais forte do que a responsabilidade, mais forte do que a civilização. O medo era um animal em fuga a espezinhar crianças enquanto fugia de si mesmo. O medo era um preconceituoso, um tirano, um cobarde, uma névoa vermelha, uma puta. O medo era uma bala apontada ao seu coração”.

Salman Rushdie, “Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites”, D.Quixote.

José Saramago, “ Discurso de Estocolmo”, 7 de Dezembro de 1998.

 “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, de pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia.”

José Saramago, “ Discurso de Estocolmo”, 7 de Dezembro de 1998.

"Apenas Miúdos", Patti Smith

 

“Apenas Miúdos”, de Patti Smith (livro vencedor do National Book Award), é de uma generosidade e força incomensuráveis.

As biografias nunca estiveram no meu leque de interesses de leitura. No entanto, por gostar muito da música de Patti Smith, tive curiosidade em conhecer melhor o seu percurso de vida.

O livro centra-se na sua história e no relacionamento que manteve com o fotógrafo Robert Mapplethorpe.

Foi no Verão em que morreu o Coltrane. O Verão do “Crystal Ship”. As crianças floridas erguiam ao alto os seus braços vazios e a China fazia rebentar a bomba H. Jimi Hendrix deitou fogo à guitarra dele em Monterey. A rádio de onda médio tocava “Ode to Billie Joe”. Houve motins em Newark, Milwaukee e Detroit. Foi o Verão da Elvira Madigan, o Verão do amor. E nessa atmosfera instável, pouco hospitaleira , um encontro fortuito alterou o rumo da minha vida. Foi o Verão em que conheci o Robert Mapplethorpe.

De uma forma poética e com um humor subtil, Patti Smith leva-nos a dar um passeio pela Nova Iorque dos finais dos anos 60 e início dos anos 70. Conta-nos a história comovente de duas almas gémeas que viveram para a arte, o início das suas carreiras artísticas, marcada pela luta pela sobrevivência, ausência de dinheiro e sede de livros e de arte, seguindo o caminho de Rimbaud, de Jean Genet, entre outros. Uma história repleta das vicissitudes que viveram enquanto traçavam os seus caminhos artísticos, anos de medo e de muitas descobertas. Durante esse passeio “tropeçamos” ainda nos artistas da Factory de Andy Warhol e naqueles que viveram no hotel Chelsea, como Janis Joplin .

Picasso não se enfiou na concha quando o seu adorado País Basco foi bombardeado. Reagiu criando uma obra-prima com a Guernica, para nos recordar as injustiças cometidas contra o povo dele. Quando eu tinha uns dinheiros extra ia até ao Museu de Arte Moderna e sentava-me diante da Guernica, tendo passado muitas horas a meditar no cavalo caído e no olho o bolbo que refulge sobre os tristes despojos da guerra. A seguir regressava ao trabalho.

Mathias Enard, “Bússola”

 “A vida é uma sinfonia de Mahler, nunca volta atrás, não endireita o que nasce torto. À parte o ópio e o esquecimento, não há escape possível da consciência do tempo, definição mesma de melancolia, da noção de finitude; a tese de Sarah pode ser lida ( penso nisso agora) como um catálogo de melancólicos, o mais estranho catálogo dos aventureiros da melancolia, de géneros e países diferentes, Sadegh Hedayat, Anne-Marie Schwarzenbach, Fernando Pessoa, para citar apenas os seus preferidos - que são também aqueles a quem ela consagra o menor número de páginas, forçada pela Ciência e pela Universidade a restringir-se ao seu tema, às Visões do Outro entre o Oriente e o Ocidente.

Mathias Enard, “Bússola”, D.Quixote.

"O Infinito num Junco", Irene Vallejo

 Talvez seja o livro que mais vezes recomendo nestes últimos tempos. Num tempo em que se fala de escassez de papel, das ameaças do digital (que só vem complementar e não substituir, a meu ver), é bom mergulharmos numa história do livro, desde antiguidade até aos nossos dias. 

Tecido pelas memórias e experiências de Irene Vallejo entramos neste livro de viagens (como a própria intitula) e vemos como o livro "superou a prova do tempo, demonstrou ser um corredor de longas distâncias". "

"O Infinito num Junco" é apaixonante. Irene Vallejo escreve para que as histórias não acabem e "para que não se quebre o velho fio das vozes". E como disse na última entrevista ao Ípsilon : "o essencial é a nossa necessidade de histórias. Precisamos das histórias para entender o mundo, para dar sentido à experiência. Hoje consumimos mais histórias do que em qualquer outro tempo. As séries, o cinema, os romances, as redes...estamos sempre a configurar tudo como histórias, partilhando-as. A história serve para combater o caos dos acontecimentos. "

Patrícia Portela, "dias úteis"

" Lembro-me de uma conversa que ouvi hoje no autocarro a caminho do centro da cidade. Um filho pergunta a um pai:

-Pai, quando é que tudo melhora?

-Quando te habituares a isto, filho.    

 Apago a luz, fecho os olhos, e prometo não me habituar.     

Imagino os governantes dos cinco continentes a combater as mesmas insónias com o medo do pesadelo dos políticos. A conspiração perfeita contra si próprios, o terror e o desejo ambivalente de quererem assinar eles próprios a lei certa que provocará a revolta do povo e a sua própria derrocada.    

Sorrio.    

Sei que não vou cumprir a promessa de não me habituar.   

 Mas gostava tanto. "

Patrícia Portela, "dias úteis", Caminho.


Maria Velho da Costa, "Myra"

 " Minha mãe esfalfou-se. Há-de haver lá dentro uns restos da máquina de costura Singer. De sol a sol também andou e andámos. Veio o tempo da tropa. Fugi a salto para nunca mais. Quis o destino que o mar me fosse o lugar do nunca mais. O mar, digo-te, é como a paixão de amor. É o lugar do nunca mais. Do até mais ver fatal. Não me trouxe remédio à vida. " 

Maria Velho da Costa, "Myra", Assírio & Alvim.

Gonçalo M. Tavares, "Jerusalém"

 

"Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente o telefone tocou. Uma vez, duas, três,quatro,cinco,seis,sete,oito,nove,dez,onze,doze,treze,catorze. Ernst atendeu."

Gonçalo M. Tavares, "Jerusalém", Caminho.

Os 50 anos de Assírio & Alvim

  No dia 12 de Novembro de 2022, a editora Assírio & Alvim completou cinquenta anos. E isso levou-me a percorrer memórias e a perceber o...